sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Homem de Concreto

     Numa fazenda pacata do interior, Joaquim cresceu e viveu, até completar 18 anos. Tirava leite das vacas, buscava água na mina, escovava os cavalos, limpava tilápia, capinava morros, plantava milho, enfim, tinha uma vida bem ativa. Quando criança, adorava jogar canjiquinha pros passarinhos e ouvi-los cantar; corria atrás das galinhas, brincava de roda com os irmãos, subia em todas as árvores e nadava muito no rio. Quando entrou pra escola, estudou muito e com afinco, e era de longe o melhor aluno da escola toda. Foi assim que passou numa universidade, e, com 18 anos, foi morar em Cidade Grande, sem nunca ter estado em cidade nenhuma antes.
     Foi assim que Joaquim caiu de paraquedas em Cidade Grande. De início tudo parecia maravilhoso! Não tinha de capinar, de buscar água, de escovar cavalo e nem de cozinhar! Na primeira visita que fez à fazenda depois da mudança, a família ficou boba com o que ouviu. Mas logo Joaquim percebeu que tinha de estudar muito mais ali na universidade que na sua antiga escola, e que o tempo que antes gastava fazendo as tarefas da fazenda, agora era todo exclusivo para os estudos. Não tardou para que começasse a sentir saudades da fazenda, de não fazer uma única coisa da vida, das árvores, da grama. Começou a odiar o concreto da cidade, os cubos e paralelepípedos retângulos das casas, salas de aula, prédios, ônibus, até das ruas! Mas ele não tinha tempo pra pensar sobre isso, pois tinha que estudar. Acabou se acostumando e se conformando  em ir pra fazenda só nos feriados, e a pisar no concreto e se enclausurar nos cubos e paralelepípedos, nas "caixas", e até levava um teto consigo, para quando estivesse nas ruas (as únicas caixas sem teto) se proteger daquilo que na fazenda não era inimigo, mas benção: a chuva e o sol.
     Joaquim cresceu, formou, casou, arrumou uma caixa em Cidade Grande num bairro muito bom, começou a trabalhar numa coisa só, onde ficava o dia inteiro clicando botõezinhos numa caixa grande e branca. Era "bem-sucedido", consumia, se amava muito e à sua família um pouco, mas a mais ninguém. Todo início de ano escrevia metas a cumprir naquele ano, e inicialmente concretizava várias delas; mas depois passou a "concretizar" todas, de modo que ficavam duras e grudavam como concreto, e acabavam na lista todos os anos. Seu pai morreu, e Joaquim herdou a fazenda, que vendeu para uma empresa construir uma represa e alagar tudo. Desse modo afogou sua verde infância e "concretizou" sua vida.
      Um dia recebeu um telefonema de sua irmã, que morava num sítio com o marido, chamando-o para conhecer seu sobrinho recém-nascido. A visão do sítio e dos filhos das amigas de sua irmã brincando o levou  a tirar os sapatos e pisar na grama. Mas em seguida retornou à Cidade Grande, e se reenclausurou em suas caixas, de onde não saiu mais. Teve filhos, que tiveram filhos, mas Joaquim não deixou mais a cidade. Gastava muito dinheiro com médicos, fisioterapeutas e até psicólogos para os filhos. Tinha vários carros, e estava sempre com pressa, mesmo depois de aposentar. À essa altura já tinha "concretizado" o cérebro e esquecido o que era pensar.
      Mas o que quero dizer com concretizar? Acontece que, no meio de tanto concreto, Joaquim começou a se "concretizar". Foi envelhecendo e "concretizando", de modo que quando tinha 60 anos já dependia de uma bengala para andar, e aos 70 usava cadeira de rodas. Até que, por fim, quando todo seu corpo já havia se "concretizado", o coração dele também se concretizou em concreto e parou de bater. Joaquim, com 74 anos, morreu; sendo colocado numa caixa, foi enterrado sob o concreto da civilização que o escravizou. A última vez que colocou os pés na grama foi 36 anos antes de sua morte, quando visitou seu sobrinho recém-nascido.


(Um desenho bem ruinzinho: não reparem muito na estética, mas na ideia! xD)